Portal ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca Portal FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz

Início / Node / O tratado global contra a poluição plástica e a indústria do tabaco: resíduos plásticos e alinhamento normativo

O tratado global contra a poluição plástica e a indústria do tabaco: resíduos plásticos e alinhamento normativo

As negociações do Tratado Global contra a Poluição Plástica impulsionam o debate sobre o papel dos produtos do tabaco como fontes de poluição. Este texto aborda como filtros de cigarro, embalagens e dispositivos eletrônicos se inserem nessa discussão e como o tema é tratado na CQCT

Luis Guilherme Lemos Hasselmann, Cetab/ENSP/Fiocruz 

30 de outubro de 2025

1. Contexto

O Tratado Global contra a Poluição Plástica, ainda em discussão, vai buscar enfrentar a poluição plástica em toda a sua cadeia — da produção ao descarte. A negociação, mandatada pela Resolução 5/14 da Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEA-5) em 2022 e conduzida pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), avançou até a sessão INC-5.2 em Genebra (5–15 de agosto de 2025).1 2 Nesse processo, os produtos do tabaco, em especial os filtros de cigarro, passaram a figurar como objeto de atenção, em razão de seu volume, composição plástica e efeitos ambientais reconhecidos pela Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), internalizada no Brasil pelo Decreto nº 5.658/2006.3 4 5

2. O mandato e a INC-5.2

A Resolução 5/14 da UNEA-5 determinou a elaboração de um instrumento internacional juridicamente vinculante com abordagem de ciclo de vida completo.1 As negociações têm sido conduzidas pelo Comitê Intergovernamental de Negociação (INC), e até agora houve cinco sessões — a última delas dividida em duas partes. A INC-5.2, realizada em Genebra em agosto de 2025, reuniu mais de 180 Estados e centenas de observadores. O encontro foi encerrado sem consenso final, mas com propostas que deverão ser retomadas em sessões subsequentes.2

3. Reconhecimento dos filtros de cigarro como plásticos de uso único

A Décima Sessão da Conferência das Partes da CQCT (COP10), realizada em fevereiro de 2024, aprovou uma decisão que reconheceu formalmente os filtros de cigarro como plásticos de uso único desnecessários, evitáveis ​​e problemáticos: a FCTC/COP10(14). O documento registrou que cerca de 4,5 trilhões de filtros são descartados anualmente, correspondendo a aproximadamente 766 mil toneladas de resíduos tóxicos, e que podem liberar mais de 7.000 substâncias químicas quando expostos a condições ambientais comuns.3 4

O texto também convidou os países a considerar medidas regulatórias, incluindo a proibição de filtros plásticos e o uso de instrumentos de responsabilidade estendida do produtor (EPR), alinhados ao Artigo 19 da CQCT, que trata da responsabilização civil da indústria.4

4. Declarações oficiais na INC-5.2

Durante a INC-5.2, em 5 de agosto de 2025, a OMS e o Secretariado da CQCT apresentaram declaração oficial defendendo a eliminação progressiva ou a proibição dos filtros de cigarro, fundamentando-se nas recomendações do Grupo de Estudos sobre Regulação de Produtos de Tabaco (TobReg), vinculado à OMS, e na decisão da COP10.6

Em 13 de agosto de 2025, a Stop Tobacco Pollution Alliance (STPA) submeteu uma declaração escrita, registrada na plataforma oficial de documentos da INC-5.2, hospedada pelo Pnuma, destacando que os filtros de cigarro permanecem entre os itens plásticos mais coletados globalmente e criticando o fato de que o texto revisado do presidente do INC, em discussão naquela sessão, não estabelecia obrigações juridicamente vinculantes para sua eliminação.7

5. Plásticos em produtos do tabaco e impactos ambientais

Relatório recente do Secretariado da CQCT, elaborado para a COP11, detalhou as fontes de plásticos presentes nos produtos do tabaco e seus efeitos ambientais.8 Entre os principais pontos:

  • Filtros de cigarro: feitos de acetato de celulose, liberam microplásticos no ambiente, sendo uma das maiores fontes de resíduos tóxicos do setor.
     
  • Embalagens e maços: incluem celofane, caixas, cartuchos e outros plásticos de uso único.
     
  • Produtos eletrônicos: dispositivos de tabaco aquecido e cigarros eletrônicos geram resíduos plásticos, além de baterias e metais.
     
  • Resíduos de fabricação: o processo industrial também gera resíduos, como plásticos, solventes, óleos e papel.

O documento reforça que as opções regulatórias abrangem diferentes etapas do ciclo de vida dos produtos. As medidas “upstream” referem-se às ações tomadas na fase inicial da cadeia, como o banimento de filtros e de plásticos de uso único em produtos fumígenos; as “midstream” envolvem a gestão e redução de resíduos durante o consumo e a distribuição; e as “downstream” dizem respeito ao tratamento e descarte final, incluindo taxas de abatimento de resíduos, sistemas de depósito e retorno, restrições a locais de consumo e classificação dos resíduos de tabaco como perigosos. O relatório também alerta para o risco de greenwashing da indústria, especialmente na promoção de filtros “biodegradáveis”, que continuam a liberar substâncias tóxicas.8

6. Riscos de interferência corporativa e posicionamentos empresariais

Durante as negociações da INC-5.2, a Stop Tobacco Pollution Alliance (STPA) destacou a importância de prevenir conflitos de interesse e proteger as negociações de interferências corporativas, enfatizando a necessidade de alinhamento do tratado aos princípios do Artigo 5.3 da CQCT, que veda a participação da indústria do tabaco em processos de formulação de políticas públicas.9

Paralelamente, empresas como a Philip Morris International (PMI), a British American Tobacco (BAT) e a Japan Tobacco International (JTI) têm buscado associar suas operações a práticas ambientais, sobretudo no campo da gestão e reciclagem de resíduos, como forma de construir narrativas de responsabilidade compartilhada e melhorar sua imagem pública. Entre essas iniciativas estão a adesão a plataformas como a Circular Plastics Alliance, coalizão empresarial europeia, e a participação em associações setoriais, como a Associação Federal da Indústria do Tabaco e Produtos Inovadores (BVTE, na sigla em alemão), que declara compromisso com a redução de plásticos em suas embalagens.10  11  12  13  14  15  16 Ao priorizarem estratégias de gestão e reciclagem de resíduos, essas empresas reforçam discursos que diluem seu papel como grandes geradoras de poluição plástica e desviam o foco de medidas de eliminação na origem, conforme alertam a OMS, o Secretariado da CQCT e organizações da sociedade civil.6  7  8

7. Alinhamento normativo

A decisão aprovada pela COP10 recomendou que os países articulem suas ações sobre resíduos plásticos de produtos do tabaco com outros instrumentos internacionais, incluindo o tratado global contra poluição plástica.4 A declaração da OMS à INC-5.2 reforçou esse alinhamento ao solicitar que os filtros fossem incluídos explicitamente no escopo do tratado.6 A presença de declarações registradas no repositório oficial do Pnuma indica que há uma convergência normativa em construção entre os dois processos.7

8. Próximos passos

A sessão INC-5.2 confirmou a relevância dos filtros de cigarro no debate global sobre poluição plástica. Já reconhecidos pela CQCT como plásticos de uso único de impacto ambiental significativo, esses produtos foram objeto de recomendações formais da OMS e de manifestações da sociedade civil durante as negociações em Genebra. Embora ainda não exista um texto final de tratado, os documentos oficiais estabelecem uma base normativa sólida para que os filtros sejam considerados em futuras etapas, em alinhamento com compromissos ambientais e de saúde pública.