Informações imprecisas sobre a COP11 têm sido divulgadas por representantes do setor produtivo e autoridades brasileiras locais. Este texto apresenta, com base na CQCT e em documentos oficiais, como funcionam os procedimentos da Conferência e o que está em discussão
Danielle Barata e Raquel Gurgel, Cetab/ENSP/Fiocruz
20 de novembro de 2025
Uma comitiva brasileira não-oficial, formada por representantes do setor produtivo do tabaco, parlamentares e membros de governos de regiões produtoras chegou esta semana a Genebra, na Suíça, para tentar participar da 11ª Sessão da Conferência das Partes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (COP11 da CQCT), que acontece na cidade entre 17 e 22 de novembro.1
Alguns membros da comitiva publicaram posts em suas redes sociais e deram entrevistas a veículos de imprensa contendo informações inverídicas sobre a COP e as discussões em pauta na Conferência, uma vez que não estavam credenciados para participar. Este texto busca elucidar alguns dos pontos levantados.
1. O governo brasileiro vetou a entrada da comitiva?
O deputado federal Marcelo Moraes (PL-RS) declarou à imprensa que: “Quem secretaria a Conicq [Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco] é a Dra. Vera [Luiza da Costa e Silva], que no passado já secretariou também a Convenção-Quadro [chefiou o Secretariado da CQCT] . E nós sabemos que ela, com a escória do governo Lula, é que não permitem a nossa entrada”.2
Mas a Conicq e o governo federal não foram responsáveis por impedir a entrada da comitiva. Organizações intergovernamentais e não-governamentais podem solicitar participação na COP, com status de observadores, desde que seus objetivos estejam alinhados com a Convenção. Nesse caso, precisam enviar um pedido até 90 dias antes da sessão; o Secretariado da CQCT analisa o pedido, prepara um relatório e, com base nele, a Conferência das Partes autoriza ou não o credenciamento. Portanto, não é o governo brasileiro ou a Conicq que toma essa decisão.3
O credenciamento da imprensa, também realizado com antecedência, precisa de aprovação do Secretariado, que analisa cada candidatura.4
Já a delegação brasileira — as pessoas que representam o país nas discussões — é constituída exclusivamente pelo Poder Executivo Federal, sob coordenação do Ministério das Relações Exteriores.5 Os integrantes precisam assinar uma declaração atestando que não têm interesses relacionados à indústria do tabaco.
2. As COPs não permitem a entrada de vozes dissonantes?
Essa é uma alegação comum. O deputado estadual Marcus Vinícius (PP-RS), por exemplo, declarou que “a COP é um evento antidemocrático e totalitário que censura o parlamento e censura a imprensa”,6 enquanto o deputado federal Marcelo Moraes afirmou que “não estamos na Conferência das Partes — aqui só tem uma parte que fala”.2
Na realidade, as decisões das COPs são tomadas a partir de discussões envolvendo vozes dissonantes entre as delegações presentes. Isso não é um problema.
No entanto, o Artigo 5.3 da CQCT determina que as Partes devem proteger suas políticas de controle do tabaco da interferência comercial da indústria.7 As diretrizes de implementação desse artigo8 recomendam explicitamente que os governos evitem qualquer forma de participação — direta ou indireta — da indústria do tabaco em processos decisórios, reconhecendo que “existe um conflito fundamental e irreconciliável entre os interesses comerciais da indústria do tabaco e os interesses das políticas de saúde pública”.
A comitiva brasileira é formada por parlamentares, membros de governos locais e representantes diretos da indústria, como o Sindicato da Indústria do Tabaco (SindiTabaco) e a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) e tem o objetivo declarado de “garantir que a delegação oficial brasileira não crie empecilhos à produção de tabaco já estabelecida no País”1 — ou seja, influenciar as decisões da COP, em desacordo com o Artigo 5.3 da CQCT.
3. A exclusão da comitiva fere o Pacto de San José da Costa Rica?
Um press-release publicado pelo SindiTabaco afirma que a exclusão da comitiva brasileira da COP11 “gerou indignação entre os representantes brasileiros, que consideram a medida uma violação aos princípios de transparência e participação pública assegurados pelo Acordo de San José da Costa Rica, tratado internacional ratificado pelo Brasil e que garante o direito de acesso à informação e à participação em processos de interesse coletivo, especialmente em temas ambientais e sociais”.9
Na verdade, a exclusão da comitiva não fere o Pacto de San José. Esse Pacto foi negociado para proteger pessoas contra desaparecimentos, torturas, censura e prisões arbitrárias, não para garantir acesso a fóruns diplomáticos. Ele protege direitos humanos, entre os quais estão a liberdade de expressão e acesso à informação pública10 — e nenhum desses direitos foi negado. O tratado não garante acesso automático a espaços privados ou restritos, presença em delegações diplomáticas, credenciamento em conferências internacionais ou participação em fóruns que estabelecem seus próprios critérios de admissão.
O tratado que governa a COP é a CQCT, cujo Artigo 5.3 obriga os países a evitar a participação da indústria do tabaco em processos de formulação de políticas. Assim, a negativa de credenciamento segue uma norma especial e específica, não violando direitos humanos previstos no Pacto.
4. A exclusão de parlamentares “fere a competência do representante popular”?
Esse argumento foi apresentado por Celles Regina de Mattos, presidente da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cicasc) e membro da comitiva, que declarou à imprensa: “Os nossos parlamentares foram impedidos de participar, e isso fere a competência do representante popular”.11 No entanto, como este Observatório já detalhou, não há na legislação brasileira nada que garanta a parlamentares o direito automático de participar de delegações oficiais, e aqueles que defendem publicamente os interesses da indústria não devem participar das COPs do tabaco.5
5. O Brasil quer responsabilizar agricultores pela poluição das bitucas de cigarro?
A delegação brasileira levou à COP11 uma proposta de decisão para que os países avaliem, entre outros pontos, o controle e destinação do lixo, incluindo os filtros de cigarro (que, ao contrário da crença popular, não reduzem riscos para os fumantes), bem como a utilização de mecanismos para responsabilizar a indústria do tabaco (não os agricultores ou consumidores) pelos danos ambientais que ela gera.12 13
A notícia divulgada pela comitiva gerou rumores de que o Brasil proporia responsabilizar agricultores familiares pelos impactos ambientais da cadeia produtiva do tabaco.
O deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC) afirmou à imprensa que “querem responsabilizar o produtor de tabaco pelos malefícios ambientais causados pelo cigarros”;14 o deputado Marcelo Moraes afirmou que o governo Lula “está propondo nessa Convenção-Quadro (sic) que tanto a indústria quanto os produtores sejam responsabilizados pelas bitucas de cigarros que são atiradas no chão”,15 e que “O Brasil hoje tenta criminalizar os produtores e a indústria pela coleta das bitucas de cigarro”.2
No entanto, não existe nenhuma proposta para criminalizar ou responsabilizar agricultores familiares pela poluição gerada por bitucas.
6. Filtros de cigarros protegem os fumantes?
Ainda em relação a essa proposta, alguns membros da comitiva têm declarado que retirar os filtros dos cigarros traria implicações negativas à saúde dos fumantes. O deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC) disse que “sem o filtro de cigarro, nós tiramos o único elemento do cigarro que ainda protege o fumante”;16 Marcelo Moraes afirmou que a COP11, “na tentativa de terminar com o plantio de fumo no Brasil, tenta atuar pelo lado meio ambiente, deixando inclusive a saúde de fora, dentro de uma discussão que é em torno da saúde”.17 Já o deputado Heitor Schuch (PSB-RS) avaliou que “cortar filtro de cigarro é como tirar o guardanapo da mesa: é anti-higiênico”.18
Mas as evidências científicas apontam, há anos, que filtros não reduzem os riscos associados ao tabagismo.19 20 21
7. Filtros de cigarros não são feitos de plástico?
Segundo o jornal GAZ, a comitiva brasileira afirma que “o filtro no Brasil não é mais feito de plástico, mas de acetato de celulose, um material biodegradável derivado do eucalitpo, o que colocaria o país à frente neste quesito”.22
No entanto, o acetato de celulose é, sim, um material plástico semi-sintético.23 Estudos não conseguiram demonstrar que há degradação completa de materiais à base de acetato de celulose em condições naturais normais; além disso, a degradação gera microplásticos. Além da poluição plástica, os resíduos de bitucas representam ameaça para organismos de ecossistemas terrestres e aquáticos devido à presença de nicotina, metais pesados e outros produtos químicos — o que significa que, mesmo se fossem totalmente biodegradáveis, os filtros ainda teriam impactos ambientais negativos.23
8. A COP quer o fim da produção de tabaco?
Membros da comitiva também têm afirmado que a COP11 planeja acabar com a produção de tabaco no Brasil. É o caso de Celles Regina de Mattos, que afirmou à imprensa: “Ninguém aqui é a favor do consumo. Mas o Brasil não pode ser o boi de piranha: parar de produzir enquanto o resto do mundo segue exportando e consumindo”.11
No entanto, não existe nenhuma proposta para acabar com a produção de tabaco no Brasil.24 Mesmo um dos membros dessa comitiva, o deputado estadual Zé Nunes (PT-RS), reconheceu isso publicamente, enfatizando que, em toda a existência da CQCT, nunca houve ameaça à produção. “O que estamos vendo aqui é sensacionalismo, promoção individual e proselitismo. Mentiras que colocam medo nas famílias que tiram seu sustento do tabaco. Isso é um desrespeito profundo aos agricultores”, disse, referindo-se a esse tipo de boato.25 26
Celles Regina também afirmou à imprensa que não se pode acabar com “uma atividade que sustenta produtores (...) sem se discutir políticas para os agricultores”.11 Quanto a isso, vale ressaltar que o Artigo 17 da CQCT estabelece justamente que os países Partes do tratado precisam promover atividades alternativas economicamente viáveis para os trabalhadores,7 o que é uma forma de protegê-los em cenários de redução da demanda por folhas de tabaco.
9. A CQCT não se importa com o contrabando?
O deputado federal Marcelo Moraes disse à imprensa achar “estranho que dentro dessa plenária ninguém fala sobre o contrabando, medidas para combater o contrabando”.2
Na verdade, o Artigo 15 da CQCT trata especificamente do comércio ilícito de produtos de tabaco — como o contrabando, a fabricação ilícita e a falsificação —, estabelecendo medidas que as Partes devem estabelecer para combater o problema.7
Existe inclusive um Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco,27 vinculado ao Artigo 15 da Convenção, e a 4ª Sessão da Reunião das Partes desse Protocolo (MOP4) acontece logo após a COP11, entre 24 e 26 de novembro em Genebra.28
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- 2. a. b. c. d. Portal Arauto no Instagram: "O deputado Marcelo Moraes relata o impedimento de acesso na COP-11 e critica a falta de diálogo. [Internet]. Instagram. 2025 [citado 19 de novembro de 2025]. Disponível em: https://www.instagram.com/portalarauto/reel/DRKNvOOlA2c/
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- 6. Deputado Marcus Vinícius de Almeida no Instagram: “COP11: vexame diplomático e ataque à liberdade de expressão!” [Internet]. Instagram. 2025 [citado 19 de novembro de 2025]. Disponível em: https://www.instagram.com/marcusviniciusrgs/reel/DRK_tuHirzy/
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