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Participação parlamentar em fóruns internacionais: o caso da COP11 da CQCT

Representantes do setor produtivo de tabaco e parlamentares alinhados à indústria têm tentado participar das sessões da Conferência das Partes da CQCT, alegando representar interesses legítimos. Este texto explica, com base nas normas constitucionais e nas diretrizes da CQCT, por que essa presença não é permitida nas delegações

Danielle Barata, Cetab/ENSP/Fiocruz

30 de outubro de 2025

1. Contexto

A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) é o primeiro tratado internacional de saúde pública da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotado em 2003 e ratificado pelo Brasil em 2005.1 Seu objetivo é proteger a população dos danos causados pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco, por meio de políticas integradas de controle.

A Conferência das Partes (COP) é o principal órgão decisório da CQCT. Cada país signatário envia uma delegação oficial para deliberar sobre a implementação do tratado. No Brasil, a formação dessa delegação é coordenada pelo Poder Executivo, com base em critérios diplomáticos e técnicos.

Logo após o início das COPs e da discussão sobre a implementação da CQCT (2003-2005), já havia tentativas de parlamentares e entidades do setor produtivo de participar desses fóruns internacionais, justificando que representam interesses econômicos legítimos de regiões produtoras e empregadores do setor. O setor passou a reivindicar isso com maior frequência desde a COP4 (2010), quando houve tensões relacionadas à proximidade entre representantes ministeriais e empresas do tabaco. A partir de então, entidades e parlamentares passaram a reclamar sistematicamente da ausência de contraditório e de restrições à sua presença, defendendo a legitimidade democrática e que a cadeia produtiva deveria ter voz nos debates por sua representatividade econômica e social.

Este texto explica por que essa presença não é permitida, com base nas normas constitucionais e nas diretrizes da CQCT.2

2. A Convenção-Quadro e a Conferência das Partes

A CQCT foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 1.012/2005 e internalizada pelo Decreto nº 5.658/2006.3 A COP reúne periodicamente delegações dos países que ratificaram o tratado, conhecidas como Partes, para deliberar sobre estratégias, diretrizes e normas de implementação do tratado. Cada Estado é representado por uma delegação governamental, conforme o Artigo 23 da CQCT:4 “A Conferência das Partes será composta por representantes dos Estados Partes. Cada Parte será representada por uma delegação composta por representantes governamentais, com base nos procedimentos estabelecidos por cada Estado Parte.”

As Partes se comprometem a adotar políticas de proteção da saúde pública contra a interferência da indústria do tabaco, conforme o Artigo 5.3 do tratado e suas Diretrizes de Implementação.5

3. A tentativa de participação da indústria e de parlamentares

Desde a criação da CQCT, a indústria do tabaco e seus aliados têm buscado participar das COPs, alegando necessidade de representar os interesses econômicos dos produtores. O Global Tobacco Industry Interference Index  de 2020 relata que “a indústria e seus aliados têm buscado participar das COPs”: em torno da COP7, grupos-frente da indústria protestaram formalmente contra sua exclusão e declararam isso “não-democrático”.6

O guia informativo da OMS sobre a COP da CQCT explica que há “um conflito fundamental e irreconciliável entre os interesses da indústria do tabaco e as políticas de saúde pública” e que as Partes devem evitar indicar pessoas empregadas pela indústria em suas delegações.7

Na ‎COP10 houve “atividades e interferência por parte da indústria e seus aliados” que incluíam reivindicações ou tentativas de participação.8

No Brasil, o debate voltou a se intensificar em 2025, durante audiência pública realizada em julho pela Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, que discutiu a posição brasileira na COP11.9

Na ocasião, parlamentares argumentaram que, por representarem o povo, deveriam integrar a delegação brasileira. Esse argumento ignora as normas constitucionais sobre separação dos Poderes e as regras internacionais que regem a participação em fóruns diplomáticos.

4. Como o Brasil define sua delegação oficial

A delegação brasileira para as COPs é constituída exclusivamente pelo Poder Executivo Federal, sob coordenação do Ministério da Saúde e do Ministério das Relações Exteriores.

A Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco e de seus Protocolos (Conicq), criada em 1999 e reestruturada em 2023 pelo Decreto nº 11.672, é responsável por subsidiar tecnicamente essa composição.10

Atualmente, a Conicq é formada por 16 representantes de órgãos e instituições públicas, entre eles o Itamaraty, a Anvisa e a Fiocruz. O Instituto Nacional de Câncer (Inca) exerce a Secretaria-Executiva. A inclusão de parlamentares ou representantes do setor produtivo só pode ocorrer mediante convite formal e credenciamento oficial.

5. Por que parlamentares e representantes da indústria não podem participar

A Constituição Federal estabelece que a condução da política externa é de competência exclusiva do Presidente da República, conforme o Artigo 84, inciso VIII. Ao Congresso Nacional cabe aprovar os tratados internacionais (Artigo 49, inciso I), mas não representá-los em negociações diplomáticas.

Assim, a presença de parlamentares nas delegações oficiais não é automática nem decorrente do mandato eletivo. Ela depende de autorização formal do Executivo.

Quanto à indústria, o Artigo 5.3 da CQCT determina que as políticas públicas de controle do tabaco devem ser protegidas de interferências de interesses comerciais.5

As Diretrizes de Implementação reforçam que os governos devem evitar qualquer forma de participação direta ou indireta da indústria do tabaco em processos decisórios. Portanto, parlamentares que defendem publicamente os interesses da indústria não devem participar das COPs. 

6. Riscos da interferência indevida

A COP11 é um fórum técnico e diplomático, cuja composição deve refletir a representação oficial do Estado brasileiro. Respeitar os limites institucionais e as normas internacionais garante a credibilidade do país e a efetividade das políticas de saúde pública.

O fortalecimento do diálogo entre os Poderes é essencial, mas deve ocorrer em espaços apropriados, sem comprometer a integridade das decisões multilaterais.

A participação não autorizada de parlamentares ou de representantes da indústria nas COPs pode gerar constrangimentos diplomáticos, violar regras da OMS e fragilizar a posição do Brasil nas negociações internacionais.

Essas ações comprometem a coerência da delegação oficial e podem distorcer a percepção pública sobre o papel da COP e das políticas de controle do tabaco.